Tuesday, December 11, 2007

Memórias distantes, pensamentos constantes


- Mãe! Não sou capaz de fazer os trabalhos… a conta não dá certo! A professora disse que nos dava umas belas reguadas se não levássemos os trabalhos feitos.
- Filha, tem calma, não desistas... a mãe já te vai aí ajudar. Se calhar o gato está escondido mas, quase aposto, com o rabo de fora.
E lá vinha a minha mãe Júlia sentar-se a meu lado, com carradas de paciência. Apesar da sua pouca escolaridade (terceira classe incompleta), o seu raciocínio era veloz e fazia contas de cabeça como ninguém. Sempre que se sentava junto a mim para me ajudar, ensinava-me com a calma e a tranquilidade dos sábios.
- Isabelinha, vamos lá ver… dois vezes seis… doze… e vai um, três vezes cinco, quinze… mais um, dezasseis…
- Sim mãe, já entendi! Dezasseis e vai um, três vezes sete… vinte e um e… vão dois. Ena! Viva! Deu tudo certo (já exibindo o meu melhor sorriso).
- Eu não te dizia filha, era o gato escondido com o rabo de fora.
E lá terminava eu as contas da Escola, feliz da vida por ter conseguido acabar e por, mais uma vez, me ter livrado das célebres reguadas.
A mãe, levantava-se então da mesa onde eu trabalhava com a certeza de me ter acalmado, e lá seguia para continuar as suas tarefas domésticas.
Bom, nem tudo eram rosas… a minha querida mãe Júlia também tinha um feitiozinho levado da breca e não nos perdoava grandes deslizes.
Lembro-me que eu e meu irmão Rui gostávamos muito de brincar na rua e sempre que havia um bocadinho livre lá nos escapávamos a toda a velocidade. Saltar à corda, correr, jogar à barra do lenço, ao ringue e à macaca eram as minhas brincadeiras preferidas e tudo fazia para prolongar aqueles belos bocados das tardes.
Perto da hora do jantar, lá de cima da janela, chegava-nos o som daquele recado habitual, gritado em voz alta:
- Isabel Maria! Rui Humberto! Já para casa lavar as mãos para irmos jantar. Vá rápido, não me façam ir aí abaixo buscar-vos.
- Já vamos mãe… só mais um bocadinho.
- Por hoje chega de brincadeira. Não vos chamo nem mais uma vez. Casa!
- Oh… deixa lá mãe… só mais cinco minutos! Depois vamos p’ra casa.
Pois é, escusado será dizer que os nossos cinco minutos viravam sempre uma eternidade e quando dávamos por ela, já tínhamos a mãe lá em baixo a correr atrás de nós. E aí é que era o Diabo! Ela já trazia na mão aqueles raminhos secos e muito fininhos que cortava dos arbustos existentes nas traseiras da casa e a verdade é que os usava para nos acertar na barriga das pernas. Garanto-vos que era remédio santo para chegarmos a casa num instante, subindo os lances de escada de dois em dois.
- Autch! Autch!
- Oh mãe, isso dói mãe… A gente só queria brincar mais um bocadinho.
Lembro-me, também, daquela vez na praia quando o meu irmão se lamentava que não sabia nadar e eu nem parei para pestanejar:
- Oh mano... não custa nada! Queres experimentar?
Antes do Rui ter tido tempo para concordar, empurrei-o da rocha onde estávamos e lá foi ele em voo descontrolado até à água. Ainda hoje, nem eu nem ele sabemos se foi da surpresa ou do susto mas o certo é que meu irmão não sabia nadar e conseguiu chegar até à margem.
- Oh mãe!!!! A mana empurrou-me para a água e eu não tinha pé…
- Isabel Maria!!!! Isso faz-se? Raio da miúda!!!! Tu não vês que podias ter afogado o teu irmão?
- Oh mãe, era só para o ajudar a aprender a nadar.
Tantas e tantas memórias e imagens que ficam...
Agora olho para ela e tudo me vem à memória... as caminhadas que fazia para poupar o dinheiro do autocarro, a fruta que comprava mais barata para fazer compotas, os jantares de Domingo à noite (frango assado com batatas fritas), os rissóis e os pastéis de massa tenra que vendia para as pastelarias da Amadora e Queluz pois tinha o sonho de construir uma casa (e construiu), vê-la a cavar a horta do quintal e a falar com as flores e com os gatos. Enfim, são tantas as imagens que me passam pela cabeça quando agora a vejo estendida naquela maca e perdida num tempo sem tempo e talvez sem memórias, ou não...
Não sei se ela percebe que estou ali ao seu lado, penso que sim. Por isso vou-lhe passando, suavemente, a mão pela testa e pelos cabelos, como se a pudesse adormecer sem dor e sem sofrimento.
O seu corpo já não pesa, flutua… a sua respiração profunda e instável parece um pouco mais fácil com a ajuda do oxigénio. Não sei quanto tempo ainda falta para a sua viagem…
Beijos,
da Princesa

1 comment:

zmsantos said...

Como eu te entendo, Princesa...
Que a sua viagem seja feita em paz.

Um beijinho.